terça-feira, 17 de março de 2009

Meu dia de fúria - Um conto


Amanheci numa dessas amanhecidas azedas, atravessadas. Tomei banho, me perfumei e me vesti da melhor maneira que pude pra ver se a coisa melhorava. O velho truque da gente se produzir para levantar o astral. Quem é mulher entende.

Entrei no carro, saí. Tudo normal - tão normal que ainda não fora possível perceber se de fato a produção operara algum efeito benéfico sobre meu estado de espírito.

Eu tava na minha, linha reta, não mexi com ninguém. Não sabia se me sentia bem ou mal mas isso não é crime. Dirigia rigorosamente dentro das leis do trânsito o meu carrinho popular não muito limpo - o que também não é crime, não me olhe atravessado! Tocava no rádio uma música razoável que não vem ao caso. O que aconteceu não é culpa da música.

Trânsito chato: pára, vai, pára, vai. Numa dessas paradas mais longas se aproxima um mal encarado. Encarei o mal encarado meio entediada, como quem vê um bezouro voando do outro lado do vidro.

Ultimamente ando meio cansada de desgraças. Quando a gente não ouve falar, liga a televisão e vê. Quando vai ao cinema, pode ser o filme que for: tem sempre cenas de miseráveis aos borbotões. Hoje, como acordei com o ovo (?!) atravessado, resolvi ser indiferente a tudo, desse no que desse. A indiferença é o melhor escudo. Se não era, naquele dia seria e dane-se.

Danar-me-ia.

O farrapento com cara de poucos amigos aproximou-se do meu carro, bateu no vidro para que eu o baixasse. Olhos arregalados, magro como ele só. A essas alturas eu já estava tão mal encarada quanto ele, apesar da Natura, Avon e Boticário.

A verdade é a seguinte: faz tempo que eu andava querendo mesmo que algo drástico me sobreviesse. Ééééé isso meeeeesmo, pode me chamar de doida. Tava cansada de tudo, de todos, de mim mesma principalmente. Só queria um pretexto pra chutar o pau da barraca. Tava naquela de torcer para o garçon derramar sopa no meu vestido, pro porteiro fechar o portão com o meu carro no meio, para a atendente do consultório ter esquecido de anotar meu nome na agenda - qualquer coisa pra botar fogo no circo. Queria mais é que pisassem no meu calo!

Não sei explicar e você não sabe entender, então chega de teorias porque afinal de contas estamos no meio da história e explicar muito acaba quebrando o clima.

Só sei que naquela hora eu podia escolher entre gritar, desmaiar - acelerar não dava - ou submeter-me às ordens daquele ladrãozinho de merda mas achei todas essas opções meio comuns, muito previsíveis. O fato é que o "comum" e o "previsível" eram justamente os elementos que haviam me colocado naquele estado anti-zen. Sendo assim, já sem pensar em nada e adorando isso, resolvi provocar Deus e o destino. Se o Altíssimo fazia muita questão de manter-me viva, que desse um jeito naquela situação porque ninguém me segurava: eu resovi despirocar de vez!

Não baixei o vidro. Saí da p**** do carro repentinamente, o que assustou o cara, que era mais baixo do que eu. Perguntei, espumando ódio, o que ele queria. Foi o tempo de ele se recompor e recuperar a valentia. Exigiu minha bolsa. Não vi revólver, então disse que não ia dar p*** nenhuma e fiz menção de voltar pro carro. Ele me segurou pela blusa e sei lá de onde apareceu uma faca. E sei lá de onde apareceu mais ódio e uma valentia de gladiador. Não sei em quem eu me fiava mas achei inebriante esse novo comportamento destemido. Era boooomm!

Empurrei o cara, ele caiu. Adorei. Mas o lazarento parecia que era de borracha porque saltou de volta e se pôs de pé antes que eu voltasse para o carro pra me trancar em segurança. Rapidinho ele me furou várias vezes. A primeira facada foi no pescoço, com certeza. A segunda no ombro e o resto não sei. Não fiquei contando. Sei que ainda consegui lhe arranhar a cara. Acho que acertei um soco em algum lugar mas foi meio sem força.

Daí pra frente é tudo misturado. No limiar da vida, tempo não conta. Lembro de algumas frases, alguns momentos específicos e pausas entre uma coisa e outra.

Eu desconfiei que estava morrendo quando abri os olhos e vi em volta de mim um monte de gente com o olhar consternado. Eu deveria estar horrível. Vi depois alguns rostos conhecidos. Não sei mais se eu ainda estava no local do crime mas olhei para cima (que não sei se era teto ou se era céu) procurando algum sinal, uma luz, uma aparição, sei lá. Não riam! Eu tava morrendo, gente! Tinha todo o direito de esperar um lance sobrenatural. Nunca se sabe.

Bem, não vi nada. Minha pieguice me pareceu sumamente engraçada naquele momento e ri de mim mesma. Alguns se comoveram com o meu olhar elevado às alturas e o sorriso piedoso. "Ela está indo... Deve estar vendo anjos... Oh Senhor!"

Comecei a sentir dor - não muita, mas o suficiente para deixar de achar qualquer coisa engraçada. Mexiam em mim. Não sei se me examinavam, se me transportavam... Por que cavei aquela situação? Queria morrer deveras? Deveria? Doeria? No que daria?

Ouvi a voz da minha irmã, aflita. Ela não sabia se eu ainda estava viva. Nessas horas nem a gente mesma tem lá muita certeza porque desmaia várias vezes, fica tonta, é uma esculhambação. Mas o humor ainda habitava meu corpo. Percebi isso pela idéia que tive quando ela me perguntou como eu estava, se eu podia ouvi-la ou ve-la.

Nesse momento, num "esforço de reportagem" abri os olhos. Vocês não sabem como isso dá trabalho quando se tem pouco sangue no corpo mas ela merecia o sacrifício. Abri os olhos e não resisti à tentação: achei que teria forças para uma piadinha e que riríamos juntas. Enfim, abri os olhos e balbuciei, entre dores e ânsias de riso: "Eis... eis que vejo ... os céus ... abertos...e...o... Filho do Homem... assentado ... no tron... "

Foi demais para mim. Ri. E mori. Porque rir requer um esforço monumental, principalmente para os esfaqueados. Ela não riu comigo. Brincadeirinha mais sem graça!

Mal gosto... Mas ao final das contas observei que foi de imensa valia a piadinha infame. Foi o tema do enterro, dos cânticos, a inspiração do pastor e a placa em minha lápide. Parti como uma bem-aventurada que viu os céus abertos e isso foi um consolo para a minha família.

Mas tem mais! Eu não estava de todo fora do contexto quando disse o que disse. É certo que naquela hora não vi coisa nenhuma, nem anjo nem luz, nadica de nada, mas depois...

Hum! Nem te conto! Você não iria acreditar. Até porque depois de toda essa palhaçada acho que fiquei meio sem credibilidade.

Um comentário:

  1. Não sei porque, mas gostei do texto. Um pouco talevz porque no início eu estava pensando que era um causo verídico. E no fim pela piadinha no leito de morte, algo que, se Deus me der oportunidade, eu provavelmente farei. eheheheheh

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terça-feira, 17 de março de 2009

Meu dia de fúria - Um conto


Amanheci numa dessas amanhecidas azedas, atravessadas. Tomei banho, me perfumei e me vesti da melhor maneira que pude pra ver se a coisa melhorava. O velho truque da gente se produzir para levantar o astral. Quem é mulher entende.

Entrei no carro, saí. Tudo normal - tão normal que ainda não fora possível perceber se de fato a produção operara algum efeito benéfico sobre meu estado de espírito.

Eu tava na minha, linha reta, não mexi com ninguém. Não sabia se me sentia bem ou mal mas isso não é crime. Dirigia rigorosamente dentro das leis do trânsito o meu carrinho popular não muito limpo - o que também não é crime, não me olhe atravessado! Tocava no rádio uma música razoável que não vem ao caso. O que aconteceu não é culpa da música.

Trânsito chato: pára, vai, pára, vai. Numa dessas paradas mais longas se aproxima um mal encarado. Encarei o mal encarado meio entediada, como quem vê um bezouro voando do outro lado do vidro.

Ultimamente ando meio cansada de desgraças. Quando a gente não ouve falar, liga a televisão e vê. Quando vai ao cinema, pode ser o filme que for: tem sempre cenas de miseráveis aos borbotões. Hoje, como acordei com o ovo (?!) atravessado, resolvi ser indiferente a tudo, desse no que desse. A indiferença é o melhor escudo. Se não era, naquele dia seria e dane-se.

Danar-me-ia.

O farrapento com cara de poucos amigos aproximou-se do meu carro, bateu no vidro para que eu o baixasse. Olhos arregalados, magro como ele só. A essas alturas eu já estava tão mal encarada quanto ele, apesar da Natura, Avon e Boticário.

A verdade é a seguinte: faz tempo que eu andava querendo mesmo que algo drástico me sobreviesse. Ééééé isso meeeeesmo, pode me chamar de doida. Tava cansada de tudo, de todos, de mim mesma principalmente. Só queria um pretexto pra chutar o pau da barraca. Tava naquela de torcer para o garçon derramar sopa no meu vestido, pro porteiro fechar o portão com o meu carro no meio, para a atendente do consultório ter esquecido de anotar meu nome na agenda - qualquer coisa pra botar fogo no circo. Queria mais é que pisassem no meu calo!

Não sei explicar e você não sabe entender, então chega de teorias porque afinal de contas estamos no meio da história e explicar muito acaba quebrando o clima.

Só sei que naquela hora eu podia escolher entre gritar, desmaiar - acelerar não dava - ou submeter-me às ordens daquele ladrãozinho de merda mas achei todas essas opções meio comuns, muito previsíveis. O fato é que o "comum" e o "previsível" eram justamente os elementos que haviam me colocado naquele estado anti-zen. Sendo assim, já sem pensar em nada e adorando isso, resolvi provocar Deus e o destino. Se o Altíssimo fazia muita questão de manter-me viva, que desse um jeito naquela situação porque ninguém me segurava: eu resovi despirocar de vez!

Não baixei o vidro. Saí da p**** do carro repentinamente, o que assustou o cara, que era mais baixo do que eu. Perguntei, espumando ódio, o que ele queria. Foi o tempo de ele se recompor e recuperar a valentia. Exigiu minha bolsa. Não vi revólver, então disse que não ia dar p*** nenhuma e fiz menção de voltar pro carro. Ele me segurou pela blusa e sei lá de onde apareceu uma faca. E sei lá de onde apareceu mais ódio e uma valentia de gladiador. Não sei em quem eu me fiava mas achei inebriante esse novo comportamento destemido. Era boooomm!

Empurrei o cara, ele caiu. Adorei. Mas o lazarento parecia que era de borracha porque saltou de volta e se pôs de pé antes que eu voltasse para o carro pra me trancar em segurança. Rapidinho ele me furou várias vezes. A primeira facada foi no pescoço, com certeza. A segunda no ombro e o resto não sei. Não fiquei contando. Sei que ainda consegui lhe arranhar a cara. Acho que acertei um soco em algum lugar mas foi meio sem força.

Daí pra frente é tudo misturado. No limiar da vida, tempo não conta. Lembro de algumas frases, alguns momentos específicos e pausas entre uma coisa e outra.

Eu desconfiei que estava morrendo quando abri os olhos e vi em volta de mim um monte de gente com o olhar consternado. Eu deveria estar horrível. Vi depois alguns rostos conhecidos. Não sei mais se eu ainda estava no local do crime mas olhei para cima (que não sei se era teto ou se era céu) procurando algum sinal, uma luz, uma aparição, sei lá. Não riam! Eu tava morrendo, gente! Tinha todo o direito de esperar um lance sobrenatural. Nunca se sabe.

Bem, não vi nada. Minha pieguice me pareceu sumamente engraçada naquele momento e ri de mim mesma. Alguns se comoveram com o meu olhar elevado às alturas e o sorriso piedoso. "Ela está indo... Deve estar vendo anjos... Oh Senhor!"

Comecei a sentir dor - não muita, mas o suficiente para deixar de achar qualquer coisa engraçada. Mexiam em mim. Não sei se me examinavam, se me transportavam... Por que cavei aquela situação? Queria morrer deveras? Deveria? Doeria? No que daria?

Ouvi a voz da minha irmã, aflita. Ela não sabia se eu ainda estava viva. Nessas horas nem a gente mesma tem lá muita certeza porque desmaia várias vezes, fica tonta, é uma esculhambação. Mas o humor ainda habitava meu corpo. Percebi isso pela idéia que tive quando ela me perguntou como eu estava, se eu podia ouvi-la ou ve-la.

Nesse momento, num "esforço de reportagem" abri os olhos. Vocês não sabem como isso dá trabalho quando se tem pouco sangue no corpo mas ela merecia o sacrifício. Abri os olhos e não resisti à tentação: achei que teria forças para uma piadinha e que riríamos juntas. Enfim, abri os olhos e balbuciei, entre dores e ânsias de riso: "Eis... eis que vejo ... os céus ... abertos...e...o... Filho do Homem... assentado ... no tron... "

Foi demais para mim. Ri. E mori. Porque rir requer um esforço monumental, principalmente para os esfaqueados. Ela não riu comigo. Brincadeirinha mais sem graça!

Mal gosto... Mas ao final das contas observei que foi de imensa valia a piadinha infame. Foi o tema do enterro, dos cânticos, a inspiração do pastor e a placa em minha lápide. Parti como uma bem-aventurada que viu os céus abertos e isso foi um consolo para a minha família.

Mas tem mais! Eu não estava de todo fora do contexto quando disse o que disse. É certo que naquela hora não vi coisa nenhuma, nem anjo nem luz, nadica de nada, mas depois...

Hum! Nem te conto! Você não iria acreditar. Até porque depois de toda essa palhaçada acho que fiquei meio sem credibilidade.

Um comentário:

  1. Não sei porque, mas gostei do texto. Um pouco talevz porque no início eu estava pensando que era um causo verídico. E no fim pela piadinha no leito de morte, algo que, se Deus me der oportunidade, eu provavelmente farei. eheheheheh

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