domingo, 8 de julho de 2007

Brincadeira das sete horas


Agora deitei e fechei os olhos. É aquela preguiça das sete horas da noite. Aquela, antes de a gente resolver tomar logo o banho. Não vou dormir. Não é hora de dormir.
Eu gostava de ficar assim, sozinha, desde quando ainda era pequena e ninguém que eu amava ainda havia morrido.

Fecho os olhos e entrego-me àquela brincadeira gostosa de "fazer de conta". É fácil. Basta ficar quietinha e se concentrar. Você manda em sua mente e ela lhe leva para onde você desejar e para a época que você quiser. Basta querer muito, mas muito mesmo. Adicione um bocado de saudade e melancolia que tudo funciona melhor.

Faz-de-conta que sou criança. Sim, sou pequena e estou deitada na cama dos meus pais. Não é hora de dormir. Ainda não jantei. Mamãe vai me chamar daqui a pouco.

(Está funcionando!)

A luz do quarto está apagada mas a da sala está acesa e clareia parte do meu corpo sobre a cama. Tomei banho há pouco. Sinto o cheiro gostoso da sopa que mamãe está fazendo. Sinto-me querida e segura. Meu vestidinho está limpo, estou penteada e a cama dos meus pais é tão cheirosa! O quarto está em ordem e sinto também o cheiro do chão recém encerado junto com o da sopa, do meu vestido, dos lençóis. Sinto um aconchego dentro de mim, uma coisa gostosa me oprimindo o peito. Quase dói. Acho que é felicidade.

Meu pai saiu agora do banho. Ele entra no quarto com uma nuvem de aromas úmidos. O vapor da água quente chega a mim quase como um carinho, quase como um ser vivo. Reconheço seu sabonete e, de olhos fechados, vejo-o enrolado na toalha. Ele me parece uma pessoa enorme. Seus cabelos escuros e cheios estão ainda ensopados. Ele está cansado do trabalho mas feliz, faminto e em paz. O mundo lá fora não existe e ele me ama. Não abro os olhos mas sei que ele é o homem mais bonito do mundo. Sua voz está dentro de mim mesmo quando calado.

Continuo assim, deitada e vendo tudo mesmo com os olhos fechados. Ouço ele abrir o vidro de colônia. Cai um talher na cozinha. Meu irmão fecha a gaveta.

Chegou uma visita que vai jantar com a gente. Minha mãe sai rapidamente da cozinha - ouço seus passos - e vai receber a visita.

É uma mulher. Sei que minha mãe vai me chamar para cumprimentá-la mas eu não quero. Quero ficar aqui, assim, sentindo o meu mundo, adivinhando onde está cada pessoa, o que estão fazendo e sentindo a paz de cada uma delas. Sei que meu irmãozinho está quase dormindo e que minha irmã brinca com as bonecas.

Daqui as pouco vão me chamar. Daqui a pouco terei de beijar a visita. Daqui a pouco iremos jantar. Mas está tão gostoso aqui, na cama do papai! Ele penteou os cabelos... escuros, molhados. Ele fala alguma coisa na sala. As pessoas estão rindo. Acho que eles estão falando das crianças - falando em nós! Acho que somos muito importantes.

Que gostoso! Quero ficar mais tempo aqui.
Que saudade! Que sopa cheirosa...

Sei que falta pouco.
Vou contar: um... dois... três... quatro...


Cristina Faraon

4 comentários:

  1. Oi Cris,
    A mente é algo incrivel, principalmente qdo sentimos saudades de "certos tempos", e isso facilita ainda mais a nossa imaginação ao ponto de não termos vontade de volta para o nosso tempo..., muito lindo, gostei da "brincadeira das sete horas", um gde bjo.

    ResponderExcluir
  2. Que lindo Cris,que devaneio gostoso esse!
    Saudades...
    Um grande beijo!

    ResponderExcluir
  3. Oi Cristina!!!!!!! como vai?
    É muito interessante pensar na essência das sete horas.

    um abraço Gleice (lembra de mim???)

    ResponderExcluir

domingo, 8 de julho de 2007

Brincadeira das sete horas


Agora deitei e fechei os olhos. É aquela preguiça das sete horas da noite. Aquela, antes de a gente resolver tomar logo o banho. Não vou dormir. Não é hora de dormir.
Eu gostava de ficar assim, sozinha, desde quando ainda era pequena e ninguém que eu amava ainda havia morrido.

Fecho os olhos e entrego-me àquela brincadeira gostosa de "fazer de conta". É fácil. Basta ficar quietinha e se concentrar. Você manda em sua mente e ela lhe leva para onde você desejar e para a época que você quiser. Basta querer muito, mas muito mesmo. Adicione um bocado de saudade e melancolia que tudo funciona melhor.

Faz-de-conta que sou criança. Sim, sou pequena e estou deitada na cama dos meus pais. Não é hora de dormir. Ainda não jantei. Mamãe vai me chamar daqui a pouco.

(Está funcionando!)

A luz do quarto está apagada mas a da sala está acesa e clareia parte do meu corpo sobre a cama. Tomei banho há pouco. Sinto o cheiro gostoso da sopa que mamãe está fazendo. Sinto-me querida e segura. Meu vestidinho está limpo, estou penteada e a cama dos meus pais é tão cheirosa! O quarto está em ordem e sinto também o cheiro do chão recém encerado junto com o da sopa, do meu vestido, dos lençóis. Sinto um aconchego dentro de mim, uma coisa gostosa me oprimindo o peito. Quase dói. Acho que é felicidade.

Meu pai saiu agora do banho. Ele entra no quarto com uma nuvem de aromas úmidos. O vapor da água quente chega a mim quase como um carinho, quase como um ser vivo. Reconheço seu sabonete e, de olhos fechados, vejo-o enrolado na toalha. Ele me parece uma pessoa enorme. Seus cabelos escuros e cheios estão ainda ensopados. Ele está cansado do trabalho mas feliz, faminto e em paz. O mundo lá fora não existe e ele me ama. Não abro os olhos mas sei que ele é o homem mais bonito do mundo. Sua voz está dentro de mim mesmo quando calado.

Continuo assim, deitada e vendo tudo mesmo com os olhos fechados. Ouço ele abrir o vidro de colônia. Cai um talher na cozinha. Meu irmão fecha a gaveta.

Chegou uma visita que vai jantar com a gente. Minha mãe sai rapidamente da cozinha - ouço seus passos - e vai receber a visita.

É uma mulher. Sei que minha mãe vai me chamar para cumprimentá-la mas eu não quero. Quero ficar aqui, assim, sentindo o meu mundo, adivinhando onde está cada pessoa, o que estão fazendo e sentindo a paz de cada uma delas. Sei que meu irmãozinho está quase dormindo e que minha irmã brinca com as bonecas.

Daqui as pouco vão me chamar. Daqui a pouco terei de beijar a visita. Daqui a pouco iremos jantar. Mas está tão gostoso aqui, na cama do papai! Ele penteou os cabelos... escuros, molhados. Ele fala alguma coisa na sala. As pessoas estão rindo. Acho que eles estão falando das crianças - falando em nós! Acho que somos muito importantes.

Que gostoso! Quero ficar mais tempo aqui.
Que saudade! Que sopa cheirosa...

Sei que falta pouco.
Vou contar: um... dois... três... quatro...


Cristina Faraon

4 comentários:

  1. Oi Cris,
    A mente é algo incrivel, principalmente qdo sentimos saudades de "certos tempos", e isso facilita ainda mais a nossa imaginação ao ponto de não termos vontade de volta para o nosso tempo..., muito lindo, gostei da "brincadeira das sete horas", um gde bjo.

    ResponderExcluir
  2. Que lindo Cris,que devaneio gostoso esse!
    Saudades...
    Um grande beijo!

    ResponderExcluir
  3. Oi Cristina!!!!!!! como vai?
    É muito interessante pensar na essência das sete horas.

    um abraço Gleice (lembra de mim???)

    ResponderExcluir