terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Glória de 1,99

O ser humano nasceu para a glória, para os grandes desafios e, por conseguinte, para as grandes conquistas. Ainda que afirmemos o contrário, há um troço estranho dentro de nós que não gosta de facilidades.  Os avanços tecnológicos que  metamorfoseiam nossa sociedade há séculos vem  nos garantindo cada vez mais vida mansa, sem calos nem suor. Mas onde ficam as emoções das grandes conquistas? Onde, oh céus? Livramo-nos de nos atracar com feras mas perdemos o gostinho de chegar na caverna com uma linda pele de tigre.  O que fazer?

Tudo pode ser falsificado nesse mundo, até as grandes causas. É verdade que antes comemorávamos fervorosamente a glória de  salvar a vida da tribo, a plantação ou a própria pele (afinal, por quê o tigre entraria na cova dele carregando, orgulhoso, a minha pele?). Mas aí alguém teve a idéia: tudo bem, fomos espertos, livramo-nos das dificuldades das guerras mas... será que precisamos perder até a festa de vitória?  "Ah não! Se der pra ficar só com o filé eu fico". E foi o que fizemos.

Cadê as grandes causas que revelavam os grandes heróis, guerreiros fortes e imbatíveis? Não tem? Pois a gente inventa.   Daí nasceram as disputas por bola, a vontade de domar uma onda ou conquistar uma montanha. Pra quê? Pra nada, só para ter motivo para comemorar. Só pra ter desculpa para a cachaça.

Falsas guerras, falsas causas mas e daí? Quem se importa? Demos à luz ao futebol, que não salva a vida de ninguém, não cura ninguém, não aumenta as colheitas nem o amor no mundo mas é comemorado como se um meteoro gigante tivesse sido desviado da rota de colisão com o planeta.

Sempre fico abismada com a emoção tresloucada de uma torcida ao ver seu time ganhar um campeonato. Tanta alegria baseada em... nada!  Sejamos sinceros: me diga qual o mérito de chutar uma bola na rede? Ou driblar uns marmanjos peludos? Sim, claro que requer perícia e muito treino mas e daí? O quê de concreto foi produzido? Não é como construir uma casa, preparar um banquete ou operar um estômago. Não é como criar um perfume maravilhoso ou uma sinfonia ou uma criança. Não, mas não vou dizer que o futebol não é nada. Enquanto divago me vem à mente, como iluminação, que ele ocupa um lugar importante em nossa existência. "Lugar" não: buraco. Buraco não: rombo! O rombo da glória - que não temos mais.

O que nos salva é o faz-de conta. O futebol é a glória do faz-de conta. Tem também o volei, o atletismo... mas hoje quero implicar só com o futebol porque é quando as pessoas gritam mais.

Faz-de-conta que fizemos algo grandioso, algo importante, algo lindo! Faz de conta que ao aderir a determinado clube nos tornamos pessoas especiais, iluminadas, titãs!  Faz-de-conta que chegamos ao topo do mundo, que fizemos o bem, que matamos feras e dizimamos os inimigos. Precisamos disso.  Festa sem preâmbulo sanguinolento não é melhor? Quem precisa de sangue se tem imaginação?

A bola entra... então gritamos, choramos, nos abraçamos, enlouquecemos! Como se aos nossos pés estivessem cobras e mamutes, tubarões e inimigos corpulentos e ferozes. No final não passamos de um monte de fracotes  ridículos gritando, mas que é divertido é.

Pois é, as disputas vazias que não melhoram nossa vida em nada, não geram nenhum bem palpável, ainda assim nos trazem de volta aquilo que a civilização nos roubou: o direito de sermos ferozes, nem que seja na comemoração. E não só isso: somos devolvidos àquilo para o que fomos criados afinal: para a glória, ainda que seja uma glória de 1,99.

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Glória de 1,99

O ser humano nasceu para a glória, para os grandes desafios e, por conseguinte, para as grandes conquistas. Ainda que afirmemos o contrário, há um troço estranho dentro de nós que não gosta de facilidades.  Os avanços tecnológicos que  metamorfoseiam nossa sociedade há séculos vem  nos garantindo cada vez mais vida mansa, sem calos nem suor. Mas onde ficam as emoções das grandes conquistas? Onde, oh céus? Livramo-nos de nos atracar com feras mas perdemos o gostinho de chegar na caverna com uma linda pele de tigre.  O que fazer?

Tudo pode ser falsificado nesse mundo, até as grandes causas. É verdade que antes comemorávamos fervorosamente a glória de  salvar a vida da tribo, a plantação ou a própria pele (afinal, por quê o tigre entraria na cova dele carregando, orgulhoso, a minha pele?). Mas aí alguém teve a idéia: tudo bem, fomos espertos, livramo-nos das dificuldades das guerras mas... será que precisamos perder até a festa de vitória?  "Ah não! Se der pra ficar só com o filé eu fico". E foi o que fizemos.

Cadê as grandes causas que revelavam os grandes heróis, guerreiros fortes e imbatíveis? Não tem? Pois a gente inventa.   Daí nasceram as disputas por bola, a vontade de domar uma onda ou conquistar uma montanha. Pra quê? Pra nada, só para ter motivo para comemorar. Só pra ter desculpa para a cachaça.

Falsas guerras, falsas causas mas e daí? Quem se importa? Demos à luz ao futebol, que não salva a vida de ninguém, não cura ninguém, não aumenta as colheitas nem o amor no mundo mas é comemorado como se um meteoro gigante tivesse sido desviado da rota de colisão com o planeta.

Sempre fico abismada com a emoção tresloucada de uma torcida ao ver seu time ganhar um campeonato. Tanta alegria baseada em... nada!  Sejamos sinceros: me diga qual o mérito de chutar uma bola na rede? Ou driblar uns marmanjos peludos? Sim, claro que requer perícia e muito treino mas e daí? O quê de concreto foi produzido? Não é como construir uma casa, preparar um banquete ou operar um estômago. Não é como criar um perfume maravilhoso ou uma sinfonia ou uma criança. Não, mas não vou dizer que o futebol não é nada. Enquanto divago me vem à mente, como iluminação, que ele ocupa um lugar importante em nossa existência. "Lugar" não: buraco. Buraco não: rombo! O rombo da glória - que não temos mais.

O que nos salva é o faz-de conta. O futebol é a glória do faz-de conta. Tem também o volei, o atletismo... mas hoje quero implicar só com o futebol porque é quando as pessoas gritam mais.

Faz-de-conta que fizemos algo grandioso, algo importante, algo lindo! Faz de conta que ao aderir a determinado clube nos tornamos pessoas especiais, iluminadas, titãs!  Faz-de-conta que chegamos ao topo do mundo, que fizemos o bem, que matamos feras e dizimamos os inimigos. Precisamos disso.  Festa sem preâmbulo sanguinolento não é melhor? Quem precisa de sangue se tem imaginação?

A bola entra... então gritamos, choramos, nos abraçamos, enlouquecemos! Como se aos nossos pés estivessem cobras e mamutes, tubarões e inimigos corpulentos e ferozes. No final não passamos de um monte de fracotes  ridículos gritando, mas que é divertido é.

Pois é, as disputas vazias que não melhoram nossa vida em nada, não geram nenhum bem palpável, ainda assim nos trazem de volta aquilo que a civilização nos roubou: o direito de sermos ferozes, nem que seja na comemoração. E não só isso: somos devolvidos àquilo para o que fomos criados afinal: para a glória, ainda que seja uma glória de 1,99.

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