terça-feira, 24 de novembro de 2009

Questões na garrafa



Já ouvi dizer que nenhum escritor escapa de um assunto único. Podem ser cento e cinquenta livros com personagens formigando mas o assunto é recorrente, volta como um pêndulo. Ele só consegue escrever sobre uma única coisa. É uma espécie de condenação.


Não é só ele. Todos temos nossas questões invencíveis. Elas não se vão e pronto.  Eu? Vez por outra venço as minhas "definitivamente". Piso-as, tranponho-as como um Dom Quixote amalucado. No dia seguinte meu espelho ri de mim. 


É, todos as temos ainda que não escrevamos atormentadamente a respeito.  Pelas minhas contas cada ser humano tem em média uns três desses fantasmas. Às vezes é um apenas. Pode tratar-se de uma pergunta daninha brotada na infância... ou uma dor pontiaguda que persiste. A verdade é que nada no mundo livrará você disso. Desista.  Eu mesma já li, interroguei, verifiquei a vida dos outros tanto aberta quanto disfarçadamente;  comparei fatos e atitudes, causa e efeito, leis que se repetiriam, possíveis previsibilidades, lições universais e nada. Nada! Cada vida é como uma impressão digital. O sapato do outro não cabe no meu pé nem no seu. Tudo é único e na prática isso não é liiindo. Na vida real é uma lástima.




Decidi: já que tenho que sofrer, fico pelo menos com o charme dos meus pequenos mistérios. Ou com a ilusão de que esses pequenos mistérios têm algum charme. Ou da ilusão mais apatetada ainda: a de que existem mistérios em questões que na verdade são comuns à humanidade (desde sempre!) e que já foram repisadas por filósofos que não li.  Pobreza intelectual...


Pois deixem-me com minhas  folhas guardadas em livros, meus recortes de papel inexplicáveis, meu retirar-me para meditar em discrição romântica. Sempre achei que essas reservas nos brindam com certa altivez "de personagem". Melhor do que desnudar-me gratuitamente para pessoas  ralas que sequer descobriram que têm questões existenciais.


Repensar e repisar...  Dizem que é isso o que o verdadeiro artista faz. Já pensei muito a respeito. Ele faz ou não faz? Faz. Aberta e veladamente. Abre o suficiente para sua arte ganhe as gerações mas fecha-se também porque não quer ser obvio.Ou não consegue ser. Ou não o traduziram direito.  Piadinha.


A maioria dos leitores ficará plainando na superfície e talvez - isso mesmo - talvez só o próprio escritor/pensador mergulhe solitário mil vezes em seus assuntos dolorosos e inconclusos, em suas perguntas que vão e vem e que uma vez respondidas seriam tão doce descanso! Mas não. Elas são cálculos que não fecham, costuras que cedem, feridas que abrem em flor, cremes que desandam, lages que racham, céus que desvestem do azul e reassumem teimosamente o luto. Pêndulos. Então os escritores morrem - e nós também! - sem nunca chegarem a lugar algum depois de tanto falatório e "escrivinhação". Sem respostas.



Também lanço aos mar minhas garrafas e meus semi-textos.  "Semi" porque nunca digo tudo. A dor mais funda fica agarrada às fundações de meus aposentos. Elas temem a luz do dia porque tudo é assustador aí fora.  A pergunta mais reveladora, o olhar prerscrutador, o fio da meada que lançaria luz à maior inseguraça, ao medo mais nítido, à fragilidade mais patética, às carnes de gelatina nuas na geada...  isso não exponho. Você não sabe de mim, só minha mãe que já se foi.



Pois sim, também lanço minhas garrafas ao mar. Dentro delas coloco folhas manuscritas com meus mais caros pesares, vexames não esquecidos, dores flamejantes, perguntas inúteis mas como doem! Lanço-a não para que volte mas para que o mar leve-a de mim, lave-as de mim. Quero despedir-me do que nem para livros ou canções servirá. Nem mesmo para mistérios sedutores.


Sento-me na areia esperançosa de perder de vista o que não me dá descanso. Verei então, apenas e para sempre, horizonte infindo. Nisso empenho minha oração. Terei o olhar perdido e a mente dos idosos, a vaguear onde queira. Feliz indolência...



É inútil. Aos primeiros raios da manhã nasce um estranho astro:  é a minha garrafa,  iluminada pelos primeiros raios do sol. Parece uma estrela do dia. Ressurge para a minha vida como um prisma. Vem a mim com tanta precisão como se eu a tivesse invocado. Volta grávida de dores, com as mesmas questões que ditarão novamenet os caminhos da minha vida.


Pois é isso e assim é. As interrogações, hesitações, frases inconclusas e o que ainda não conseguimos resolver são a foice que nos abre o caminho do dia seguinte. E o dia seguinte é tudo de que precisamos para continuar.

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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Questões na garrafa



Já ouvi dizer que nenhum escritor escapa de um assunto único. Podem ser cento e cinquenta livros com personagens formigando mas o assunto é recorrente, volta como um pêndulo. Ele só consegue escrever sobre uma única coisa. É uma espécie de condenação.


Não é só ele. Todos temos nossas questões invencíveis. Elas não se vão e pronto.  Eu? Vez por outra venço as minhas "definitivamente". Piso-as, tranponho-as como um Dom Quixote amalucado. No dia seguinte meu espelho ri de mim. 


É, todos as temos ainda que não escrevamos atormentadamente a respeito.  Pelas minhas contas cada ser humano tem em média uns três desses fantasmas. Às vezes é um apenas. Pode tratar-se de uma pergunta daninha brotada na infância... ou uma dor pontiaguda que persiste. A verdade é que nada no mundo livrará você disso. Desista.  Eu mesma já li, interroguei, verifiquei a vida dos outros tanto aberta quanto disfarçadamente;  comparei fatos e atitudes, causa e efeito, leis que se repetiriam, possíveis previsibilidades, lições universais e nada. Nada! Cada vida é como uma impressão digital. O sapato do outro não cabe no meu pé nem no seu. Tudo é único e na prática isso não é liiindo. Na vida real é uma lástima.




Decidi: já que tenho que sofrer, fico pelo menos com o charme dos meus pequenos mistérios. Ou com a ilusão de que esses pequenos mistérios têm algum charme. Ou da ilusão mais apatetada ainda: a de que existem mistérios em questões que na verdade são comuns à humanidade (desde sempre!) e que já foram repisadas por filósofos que não li.  Pobreza intelectual...


Pois deixem-me com minhas  folhas guardadas em livros, meus recortes de papel inexplicáveis, meu retirar-me para meditar em discrição romântica. Sempre achei que essas reservas nos brindam com certa altivez "de personagem". Melhor do que desnudar-me gratuitamente para pessoas  ralas que sequer descobriram que têm questões existenciais.


Repensar e repisar...  Dizem que é isso o que o verdadeiro artista faz. Já pensei muito a respeito. Ele faz ou não faz? Faz. Aberta e veladamente. Abre o suficiente para sua arte ganhe as gerações mas fecha-se também porque não quer ser obvio.Ou não consegue ser. Ou não o traduziram direito.  Piadinha.


A maioria dos leitores ficará plainando na superfície e talvez - isso mesmo - talvez só o próprio escritor/pensador mergulhe solitário mil vezes em seus assuntos dolorosos e inconclusos, em suas perguntas que vão e vem e que uma vez respondidas seriam tão doce descanso! Mas não. Elas são cálculos que não fecham, costuras que cedem, feridas que abrem em flor, cremes que desandam, lages que racham, céus que desvestem do azul e reassumem teimosamente o luto. Pêndulos. Então os escritores morrem - e nós também! - sem nunca chegarem a lugar algum depois de tanto falatório e "escrivinhação". Sem respostas.



Também lanço aos mar minhas garrafas e meus semi-textos.  "Semi" porque nunca digo tudo. A dor mais funda fica agarrada às fundações de meus aposentos. Elas temem a luz do dia porque tudo é assustador aí fora.  A pergunta mais reveladora, o olhar prerscrutador, o fio da meada que lançaria luz à maior inseguraça, ao medo mais nítido, à fragilidade mais patética, às carnes de gelatina nuas na geada...  isso não exponho. Você não sabe de mim, só minha mãe que já se foi.



Pois sim, também lanço minhas garrafas ao mar. Dentro delas coloco folhas manuscritas com meus mais caros pesares, vexames não esquecidos, dores flamejantes, perguntas inúteis mas como doem! Lanço-a não para que volte mas para que o mar leve-a de mim, lave-as de mim. Quero despedir-me do que nem para livros ou canções servirá. Nem mesmo para mistérios sedutores.


Sento-me na areia esperançosa de perder de vista o que não me dá descanso. Verei então, apenas e para sempre, horizonte infindo. Nisso empenho minha oração. Terei o olhar perdido e a mente dos idosos, a vaguear onde queira. Feliz indolência...



É inútil. Aos primeiros raios da manhã nasce um estranho astro:  é a minha garrafa,  iluminada pelos primeiros raios do sol. Parece uma estrela do dia. Ressurge para a minha vida como um prisma. Vem a mim com tanta precisão como se eu a tivesse invocado. Volta grávida de dores, com as mesmas questões que ditarão novamenet os caminhos da minha vida.


Pois é isso e assim é. As interrogações, hesitações, frases inconclusas e o que ainda não conseguimos resolver são a foice que nos abre o caminho do dia seguinte. E o dia seguinte é tudo de que precisamos para continuar.

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